Frestas #11, parte 01: Só o amor (sem tempos duros)
O contraste e o uniforme: Reflexão sobre os impactos dos seis passos, percurso de criatividade do Leituras Org.
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também :)
tornar o amor uma casa
erguê-lo como se ergue um lugar, abrigar-se nele
entrar dentro do amor
refugiar-se em suas trincheiras como
os que vêm feridos de morte
os que de súbito entendem que viver é breve -
mas amar é longo
torná-lo tua mão que alcança a minha
a volta a um primeiro ato
de misericórdia
o sangue marcando as ombreiras de nossas portas
tornar o amor um esconderijo de infância
uma fresta na madeira
uma luz tênue
uma ave
tornar o amor uma casa;
torná-lo
uma asa
que seja casa, o amor
ainda que amar desabrigue.
(Canção Derruída, Mar Becker.)
Meu primeiro livro foi sobre o meu primeiro amor.
Antes de sair de casa não sabia o que era isso, sentir algo tão forte por alguém assim que te faz doer o peito quando acaba. Foi perfeito no tempo que foi, em todas as suas imperfeições. Me ensinou a ser uma pessoa melhor, a ter uma maior responsabilidade afetiva. Me ensinou a descobrir o meu corpo — e não ter medo de desvendar o do outro também — de ter maturidade de explorar o desejo e outras formas de ver o mundo.
Minha forma de perceber todo esse turbilhão de sentimentos que te arrebata num piscar de olhos só foi acontecer com a escrita. Quando era mais nova, tinha um caderno em que colocava tudo para fora, sem nenhum tipo de julgamento ou até experiência no que toca escrever e, ao mesmo tempo, o próprio ato de se relacionar. Naquela época, foi a primeira vez que eu comecei a utilizar a escrita como um refúgio. Uma tentativa de esclarecer as coisas. Por vezes saíam textos, por outros, poemas. Comecei a partilhar com os amigos e gostei de receber esse feedback. Isso me impulsionou a fazer mais. Não sei, queria ser vista, entendida de certa forma.
E foi ali que Aqui cabe um poema surgiu. Eu não me considerava escritora naquela época, mas depois que comecei a estudar os processos de escrita e escrever como profissão, fiquei com vergonha daquele livro. Daquele livro que na época foi tão importante de escrever para dar um passo na minha vida.
Talvez por ele ser um livro completamente imaturo, mas sincero e, por vezes, intenso demais. Talvez por ter sido feito completamente de forma autônoma com apenas 18 anos e em edição de autor, com todos aqueles erros que deixei passar. Não sei. Tirei de circulação depois de mais de um ano.
Não me arrependo de ter escrito nem de tirá-lo do mundo, mas estou contente por ele ainda estar aqui, exposto só para mim, se um dia eu quiser reler.
Sustentar uma atividade criativa exige coragem. Como já escrevi aqui em outras ocasiões, arte não é útil e tem essa estranha tendência de ser relegada ao campo dos passatempos. Enquanto você tenta, pouca gente reconhece. Se você consegue, admiram sua tenacidade. É cansativo conviver com essa vontade de produzir algo tão abstrato quanto um livro, uma música ou um filme, quando o mercado exige um produto rentável, e você ainda não sabe se tem valor. São muitas as dúvidas que, somadas à necessidade de sobreviver, pouco dão espaço para a criatividade que não dá retorno imediato. Tem que ter coragem, sim. Mas também um pouco de descaramento, uma coisa de se abrir para a falta de vergonha.
Desde então, tenho um pouco de aversão em escrever poemas amorosos. Adoro ler os dos outros, mas os meus me dão incômodo. Desde Aqui cabe um poema, tenho muito medo de regredir na escrita (ou no que eu gosto dela, da sua variedade e de nunca saber o que vai sair de um poema quando inicio).
Desde o meu primeiro livro sobre o meu primeiro amor, tenho aversão aos clichês, ao que teoricamente poderia vir a vender mais, a infantilidade que eu poderia interpretar do resultado depois de um tempo publicado. Mas a verdade é que ninguém nunca vai estar 100% satisfeito com a sua escrita após terminada. Fomos criados para o aperfeiçoamento e às vezes é difícil saber a hora de parar.
E é difícil saber a hora de parar ainda mais quando a vida exige mais vida e o amor é como um salto em queda livre sem equipamentos de segurança. Há uma voz interna do não não não até chegar a voz do sim sim sim. É reconhecer o desejo de liberdade e associá-lo também à sensação de pertença, ao abraço de si. É assumir a necessidade da falta de comunicação — de mim, do outro — que vem a partir dessa rapidez da vida, mas ao mesmo tempo é assumir o medo de reconhecer a sua própria profundidade como mecanismo de autossabotagem em atrair e querer ficar apenas no raso do outro.
Acredito que foi em meio desses pensamentos que o Nem só de Amor vive Afrodite surgiu. Agora, depois de alguns poemas amorosos e três livros de poesia, vi o anúncio do curso do Leituras Org dos seis passeios e mergulhei de cabeça nessa experiência, com o objetivo de ver que a minha escrita de poemas de amor não necessariamente precisa ser algo subjetivo — e que tá tudo bem se sair assim. Por um momento acredito que meu receio de escrever poemas de amor é por todo esse desembrulhamento que ocasiona e, por isso, entrei nesse percurso criativo do Leituras Org com o objetivo de fazer algo que me desafiaria, me tirasse da zona de conforto da minha escrita, para me permitir encontrar outras experiências e linguagens e inseguranças e forças de outras mulheres escritoras que mergulharam comigo nesses passeios.
E é sobre isso que a Frestas #11 se trata.
A ideia é partir de um amor à primeira vista até chegar à saudade e ao reencontro. São seis temas propostos para pensarmos sobre tudo que não for bruto. Agora vamos sofrer por problemas pessoais.
Encontramos você amanhã.
(Leituras Org)
Seis passeios sobre a escrita e a leitura de poemas de amor. Com o amor, a coragem, a vulnerabilidade e o encontro. É o que Mar Becker diz em Canção Derruída:
tantas palavras possíveis para o amor na língua dos homens
mas uma mulher ama a outra em silêncio.
Dessa forma, fiz o convite e partilho aqui um feedback mais direto da comunicação e da escrita de algumas das escritoras que fizeram parte desse meu-nosso percurso.
Estou realmente muito feliz de ver o resultado e as relações de todos esses passeios com tanta mulher talentosa se conhecendo, se admirando e compartilhando poesia juntas.
Esta é a primeira de algumas partes dessa newsletter. Espero que gostem!
Passos 00: A história mais velha do mundo - Uma introdução
I
te carrego nos olhos
no peito nunca acostumado em te ver partir
te carrego nas entrelinhas
na manga do casaco
no meu andar errado
te carrego para cima e para baixo
carrego suas reticências
e deixo com que elas se sintam livres
para serem o que vieram para ser
te carrego no silêncio
na miudeza de distância de nossos lábios
na trêmula tentativa de dizer que te amo
desde também a fachada azul da sua casa
desde o instante em que nos encontramos no
final do dia com aquela saudade amarrotada
te carrego comigo como alguém que se despede de um grande amor na estação
como eu mesma que faço uma oração ao tempo
para que o tempo volte, e volta e meia, te
traga de volta.
(Sem título, Ana Karoline Oliveira).1
na primeira vez eu saí correndo
carreguei meu arsenal
minha minissaia laranja
poderia ter ido de skate
mas só abri a porta
e esqueci de encapar os cabos
na segunda vez
tinha menos pressa
depois de três horas escolhendo
vesti um top que eu nem tenho de verdade
e você chegou num tanque enorme
munido de gracinhas
na terceira vez
que na verdade era a segunda
baixei a guarda e vi
as faíscas
no chão do seu quarto
entre os farelos de pão e o fio de provolone que eu arranquei
com os dentes
na terceira vez mesmo
que poderia ser a segunda ainda
foi quando eu perdi a conta
as armas ficaram pesadas
e agora os riscos eram inúmeros
infarto, eletrocução, traumatismo, asfixia,
afogamento
mas se alguém viu não avisou
a taça de aperol que se formava
sob os postes de energia pela rua
lá pela quarta vez
que deve ter sido a vigésima
surgiam nomes pelo suor das paredes
quanto mais eu dobrava mais papéis apareciam
e tudo ficou repleto
de pernas e óculos e cabelo e pó de giz
rodopiando com o vento
da chuva de verão
que invadia a cozinha e deixava grudado
um pedaço de caqui cheio de cica
um caroço de melão
areia no fundo da bolsa
uma pitada de sal no café
na quinta ou milésima vez
o fogo ainda crepitava e lambia
tudo que quis deixar lá fora
mas você trazia de volta pra dentro
havia nomes armas origamis marcas sonhos riscos
e um puta cheiro
de protetor solar.
(Keep´em coming, Laura Miranda).2
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 11, parte 02!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 23 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Meu novo livro, Nem só de amor vive Afrodite, está disponível para compra pela Editora Philos, e te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.
Ana Karoline Oliveira tem 21 anos, é nascida e criada quase a vida inteira num pequeno apartamento no interior de São Paulo. Agora, reside em Curitiba andando sempre em busca contínua de si. Completamente apaixonada por pessoas, palavras e por um dia de céu azul — ou de carnaval — mesmo que seja para pular no bloquinho de uma pessoa só e fazer poesia com toda a folia que mora em seu peito.
Laura Miranda tem 26 anos, fala bobagem por costume e inglês por dinheiro. É poeta talvez desde a alfabetização, tradutora há pouco menos tempo que isso e tem mais curiosidade do que seu currículo comporta. Tem medo de sapos, marimbomdos e adolescentes.