
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
Como ter certeza se, da mesma forma que para mim, o importante para Julia não era estar em algum lugar, mas sim cair fora de outro?
Seis horas da tarde. Decidindo se valia a pena esperar mais uma hora para pegar o autocarro ou pagar seis euros a mais por um uber. Como aqueles luxos que todo imigrante se dá por fazer depois de um dia cansativo, pedi um carro pelo aplicativo. Sentei, disse boa noite, meu nome e o local de destino. O motorista inicia o trajeto, mas não segue o mapa, decide ir pela Estrada Nacional, daquelas estilo estrada de interior de cidade, com mangas de vento laranjas encostadas na lateral da rodovia.
O motorista? Brasileiro. Daqueles que olha pelo espelho retrovisor para falar e, quando percebe algo em comum, fala até demais. Eu tentava manter as aparências de que queria uma viagem silenciosa sem parecer grossa. Em algum momento da viagem, ele percebeu e ligou a rádio. Para a minha surpresa, ouço uma voz reconhecida. Brasileira.
Como seria possível?
"Essa é a rádio JB FM. Música e informação.”
Logo em seguida à fala, Bubbly da Colbie Caillat começa a tocar e eu me sinto de volta ao carro dos meus pais, tal como fazíamos ao seguir o trajeto para Araruama. Dessa vez, para a minha casa, quase numa aldeiazinha no interior de um país europeu, alguns poucos-muitos quilômetros do Rio de Janeiro.
Nessa passagem de final de dia, senti-me um pouco como a personagem Julia sentada no banco do passageiro de Todos Nós Adorávamos Caubóis.
Inicialmente, Todos Nós Adorávamos Caubóis, da escritora Carol Bensimon — também imigrante — me surpreendeu pela nota baixa no goodreads. Não que seja uma norma, mas as avaliações, por vezes me dão uma certa clareza antes de começar qualquer livro. Ignorando as críticas, iniciei a leitura. Voou. Não pelo motivo de estar adorando o livro ou a personagem principal, Cora, mas porque me incitava todo o incômodo que ela me causava.
Em geral, esse tal incômodo em que o livro parecia deixar no público foi repassado por mim por simplesmente ser uma narrativa que não se encaixa numa prateleirazinha do que nós vemos ou gostaríamos de ler quando encontramos uma premissa em que nos identificamos logo de cara.
Sim, deixo um contexto bem simples: Cora e Julia são amigas de longa data, mas não sabem dar espaço para as suas emoções e isso, consequentemente, fazem com que elas tenham dificuldades de se relacionarem não só com os seus familiares, mas com elas mesmas. Dessa maneira, quando há um obstáculo, o mais fácil é simplesmente ignorá-lo. O que Cora e Julia decidem, após tentarem encontrar motivos para contabilizarem os seus medos, é tentarem se encontrar, ano após ano.
Para os que leram e possuem críticas em relação ao original, sim, é uma leitura em que temos a Cora, uma personagem forte e difícil, para uma trama em que deixa a desejar em termos de impacto. Porém, o que eu acredito que os leitores não conseguiram visualizar, foi a intenção principal da autora (acredito eu) de fazer escrita e deixá-la exatamente nos seus incômodos — com descrições extensas, erros, personagens não tão adorados e por vezes irônicos. Esse próprio estilo do gênero literário, arrisco dizer que ficção brasileira contemporânea sim, mas também literatura voltada para literatura de viagens, em que o deslocamento também trabalha com a própria questão da identidade e gênero.
Cora é uma personagem, assim como o leitor, e assim como eu, em construção. Ela não precisa saber de tudo, não precisa ter os cinco anos do futuro planejado. Tampouco Julia, que começa a perceber isso ao se desvencilhar daquilo que sempre lhe foi dito para conquistar assim que saísse do ensino médio. E é exatamente isso que a relação de Cora e Julia também irrita no leitor — elas ainda não sabem, mas nunca vai ter um não-lugar para explicar o motivo dessas questões que elas não conseguem lidar.
O lugar é aqui.
O lugar é agora.
"E você a chamaria de quê, Jean Marc?”
Ele se levantou da cadeira e escancarou as cortinas.
“No máximo de uma pessoa que não tem a sua coragem.”
E foi com essa sensação sobre reaprender o presente que me encontrei em Figueira da Foz, à beira da praia, terminando a leitura na sombra, já que não posso pegar sol por uma tatuagem que foi feita recentemente. Ações todas essas ditas nesse parágrafo por completo impulso, porque às vezes é aliviante não termos uma sensação de controle. E fechar o livro da Carol olhando para o mar me dá essa sensação de conforto no corpo que eu ainda aprendo a andar.
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E para você que leu até aqui, muito obrigada! Te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 27!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 25 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida e criada em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo em Portugal desde 2018. Graduada em Português com menor em Línguas Modernas na Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Editoriais na Universidade de Aveiro. Tenho participação em revistas, antologias e festivais literários no Brasil e em Portugal, poetas emergente que abriu o curta “Adélia Prado: Mais tempo alegre do que triste” na FLIPOÇOS 2024.
Atualmente, tenho contribuído com serviços editoriais para a publicação de mais de 35 livros, com autores de diversas nacionalidades. Sou autora dos livros Aqui cabe um poema (2021, edição do autor), Nem só de amor vive Afrodite (2022, Editora Philos, Semifinalista do Prêmio Oceanos 2023), Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua (2023, Editora Urutau) e Leopardos que Dormem nas Copas de Árvores (2025, Editora Urutau, finalista na Mostra Nacional Jovens Criadores 2023, do Gerador).
Aqui na Frestas, te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.
adorei, me senti fechando o livro junto contigo e olhando pro mar ✨ obrigada por compartilhar!
Pow, que bonito isso, a sensação que a leitura te deixou, e a generosidade/esperteza em enxergar e tirar na/da obra algo mais! Fiquei até curioso pra ler, Carol já tá no meu radar há algum tempo!