Frestas #10: A publicação de poesia em Portugal em diálogo: autores, editores, leitores.
Não é um evento, é um movimento: Encontrar poesia fora dos grandes centros portugueses, com Acílio Gala.
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
há um certo jogo
em dobrar o papel no meio
cortar o dedo no final da página
mostrar os dentes sem sorrir
enquanto os dedos direcionam
as glândulas olfatórias
pega noutra folha
há um certo jogo
em estancar o sangue mesmo que o tempo não
o tempo não
permita não deixar a marca cavalgar
nas coisas estranhas (ainda bem)
temos o fim do mundo
a áurea da combustão
a inflação dos sinais de pontuação que
dobra
o papel no meio
há um certo jogo
em amassar o papel
como um cavalo de uma tonelada
arrastar o ruído mesmo que o tempo não
o tempo não
permita entrar no corpo
é o nosso fim
há um certo jogo
o fascínio cavalga
cavalga
nas coisas estranhas (ainda bem).
(Dormir tanto em pé quanto deitada, Julia Peccini).
Quem publica poesia hoje em Portugal é, principalmente, poetas que gostam de escrever poesia. O que é correspondido com a realidade do mercado editorial português — há cada vez menos espaço para poesia nas grandes editoras. A poesia centra-se na small press e, quando uma vez reconhecidos, possuem chances de ocupar um espaço nos grandes polos editoriais.
Entretanto, como se justifica a poesia ser um dos subgêneros que menos se vende, se existem milhares e milhares de poetas no país, espalhando sua arte nos mais variáveis locais e estilos?
Sébastien Dubois (2006), nos seus estudos sobre o mercado editorial de poesia na França que podem, inclusive, ser aplicados em Portugal, explica que “a poesia é, então, uma das verdadeiras vítimas da mercantilização da cultura e da concentração do mercado livreiro num oligopólio.” (p.25). Assim, Dubois associa o conceito de arte “pura” de Bourdieu para classificar e justificar a permanência da tipologia e dos leitores de poesia:
“Os leitores de poesia contemporânea são, antes de tudo, poetas, editores de poesia e críticos de poesia. Segundo Bourdieu (1998, 1999), a poesia se posiciona como arte “pura”, reduzindo a demanda aquilo que ela mesma pode criar: o público de poesia são os produtores de poesia.” (Dubois, 2006, p.30).
A questão que importa aqui é essa: Há muita escrita de poesia em Portugal, porém, os autores continuam nas margens do sistema quando não possuem voz nos mass media, não permitindo espaço para visibilizar novos autores. É deste modo que as pequenas editoras de poesia e as revistas interartes independentes se desenvolvem, formando uma certa “subcultura” (Goia, 2002, citado em Dubois, 2006, p.23) que envolve o espaço da edição de poesia em Portugal. E o trabalho crucial para nós, como leitores, poetas e amantes de poesia, é consumir e divulgar nossos conterrâneos.
Acílio Gala, com a Poesia Vadia, reforça: há poesia para fora dos grandes centros.
a pedra serve a revolução
a pedra possibilita o caminho
a pedra representa a humanidade
a pedra une-se ao sal das lágrimas
a pedra torna-se abrigo
depois de tudo isto
direi que a poesia é uma pedra.
(A poesia é uma pedra, Acílio Gala).
Como surgiu a Poesia Vadia?
A Poesia Vadia surgiu a Outubro de 2020 do desejo de criar um espaço seguro onde se pudesse partilhar poesia e arte, ao mesmo tempo que se dá palco a artistas emergentes nas mais variadas áreas artísticas.
Como foi fazer essa tour por Portugal? O que te surpreendeu mais?
A tour em Portugal foi talvez das experiências mais interessantes que fizemos até agora com a Poesia Vadia. Tanta diversidade seja na poesia que fomos ouvindo como da própria visão do que é poesia. O que nos mais surpreendeu é que ainda existe muita gente disposta a elevar a poesia em Portugal, independentemente das barreiras que existam. Muitas pessoas dedicam grande parte da sua vida à poesia e isso é lindo.
Como é a sua relação com a poesia?
A minha relação com a poesia diria que carrega uma certa dualidade. Tanto posso acreditar na poesia como uma ferramenta para tornar o mundo melhor, como muitos outros dias estou completamente desacreditado na sua força de mover as pessoas. Isto num âmbito mais geral, sendo que num contexto mais pessoal essa ideia também é transversal: muitas vezes sinto que se não escrever aquele verso naquele segundo, que a minha vida pode desabar, contudo há momentos em que não toco numa folha e caneta durante semanas.
O que é a poesia para você?
Poesia para mim, num sentido mais restrito, é tudo aquilo que me causa espanto e que me faz questionar, é tudo aquilo que me acrescenta algo e que diz o indizível, que tenta mostrar o desconhecido e o oculto. Num sentido mais lato, diria que poesia é uma forma de se ver o mundo e de criar.
Pode nos contar mais um pouco sobre o seu livro "Poemas para o Silêncio"?
O livro Poemas para o Silêncio foi uma surpresa. Foi editado por ter sido um dos selecionados num concurso de poesia no Festival de Poesia de Lisboa no ano de 2022. O processo em si foi relativamente distante e se pudesse escolher, talvez pensaria duas vezes em publicar o meu primeiro livro desta forma, contudo sinto-me grato também por este caminho ter-me sido aberto. No que toca ao seu miolo, todos esses poemas vêm como uma urgência e resposta a este mundo que nos torna tão distantes e tão pouco presentes. Estes poemas surgiram dessa fonte inesgotável que é o silêncio.
Qual é a sua opinião hoje sobre a visibilidade da poesia e a publicação de poesia em Portugal?
A visibilidade da poesia em Portugal ainda tem muito que caminhar, principalmente porque está estritamente ligada à forma como a publicamos no nosso país. A publicação de poesia em Portugal deixou de se realizar com base na sua qualidade, na sua intimidade e complexidade, dando-se agora palco à questão do produto e da sua possibilidade de lucro por parte das editoras. Estas são hoje fabricantes de sonhos, onde muitas vezes iludem os/as artistas relativamente à obra que estes/as têm em mãos.
Eu conheci o seu projeto online, assim como muitos outros poetas no país. Qual é a sua opinião quanto a difusão de poesia nas redes sociais? Acha que é uma ferramenta para deixá-la viva ou até alcançar novos leitores?
No que toca às redes sociais, vejo-as como grandes ferramentas de difusão de um trabalho ou projeto pessoal, sem dúvida. É um mar de oportunidades que há anos atrás não existia, não pelo menos desta forma. No que toca à difusão de poesia pelas redes sociais, acho que fica muito aquém pois não deixa de ser um consumo muito rápido, que não pede o corpo todo, que não requer um mergulho atento na poesia, como muitas vezes, senão todas as vezes, a poesia pede. O consumo de poesia nas redes sociais muitas vezes não passa mais do satisfazer uma necessidade que parece hoje estar em voga. Claro que também existem muitos outros casos contrários a este onde pode realmente existir uma difusão clara e real do que é a poesia e consequentemente um consumo mais atento e honesto.
Há muitas opiniões diversas sobre a questão do pagamento de inscritos para apresentar ou até divulgar a sua poesia em certos eventos, como vemos acontecendo em algumas editoras portuguesas para a publicação de uma obra poética. Qual a sua opinião sobre os festivais literários e de poesia no país?
Existem festivais e festivais. Editoras e editoras. O facto de um festival ou uma editora para além de exigir uma obra poética a uma pessoa, pedir ainda “ajuda” financeira para “cobrir custos” parece-me muito pouco honesto. Claro que existem vários custos a cobrir seja na produção de uma obra seja na produção de um evento/festival, mas atualmente muitas editoras e festivais de poesia (não todas/todos) parecem vender uma ideia muito desonesta e camuflada das suas intenções, onde tantas vezes o/a artista está a prestar serviços onde não é pago e onde ainda tem que pagar. Que lugar pertence ao/à poeta e que lugar merece o/a poeta?
Que lugar pertence ao/à poeta e que lugar merece o/a poeta? Alguns poetas mergulham numa resposta. Wislawa Syzmborka, em O poeta e o Mundo, tenta — o poeta se move pelo “não sei”. Já Marina Tsvitpieva, em O poeta e o Tempo, continua — A poesia é uma espécie de necessidade do artista. Sua única tarefa política é existir. Completo esse pensamento com Villém Flusser, em O nome — o poeta pertence à língua, e a língua ganha, graças a esse choque do intelecto com o inarticulado, uma nova palavra.
Enquanto a resposta ainda não é exata, continuamos por aqui. Escrevendo. Resistindo. Construindo novos espaços e novas palavras.









Alguns outros:
Dando continuação sobre projetos editoriais na cidade de Coimbra, deixo aqui a subsolo livros, que também esteve presente na tour da Poesia Vadia, um projeto experimental criado pela editora e poeta Lia Cachim que visa a edição de uma coleção de livros de poesia escritos por artistas underground da comunidade lusófona. Uma plataforma online de distribuição dos livros do projeto, de livros em segunda mão, livros de edição de autor e publicações periódicas independentes.
Esse ano a Subsolo iniciou a publicação da coleção A Poesia que Poeticamente se Revolta, com trabalhos de António Fojo, P. Novo, Rodrigo Antas e eu, Julia Peccini.
Músicas que fizeram parte desse mês:
Podcast do mês:
Venho divulgar aqui as redes e o trabalho na oficina que participei essa mês da Anna Carolina Ribeiro (que inclusive foi importante para escrever uma parte dessa news) chamada A métrica da Poesia — “Uma oficina para escritores e pessoas interessadas em escrita ou crítica literária de poesia que desejam compreender o que é poesia e quais são os recursos técnicos mais comuns do gênero.”
Livros lidos em Julho:
Rilke Shake, Angélica Freitas.
Um Útero é do Tamanho de um Punho, Angélica Freitas.
Canções de Atormentar, Angélica Freitas.
O Mal dos Outros, Bruno Vieira Amaral.
Macau Noir, Clara Ferreira Alves.
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 11!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 23 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Meu novo livro, Nem só de amor vive Afrodite, está disponível para compra pela Editora Philos, e te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.