Frestas #08: A arte que surge na ilimitação.
Alguns conhecimentos e práticas roubadas de escrita criativa.
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
Ação após o conflito
“o poema poeta pergunta - o que é ser poema
e a poesia perde-se
na hora que tem
de se perder.”
(Mapa de Portugal até mim, Julia Peccini)
Acho que uma das coisas mais difíceis para mim como escritora é sentar a bunda na cadeira e começar a escrever do zero. Tem que ter um gatilho, uma fresta, alguma centelha da memória ou do olhar que me pegue o pensamento.
Ao mesmo tempo, vêm a angústia.
Será que esse fato de precisar de ter um antecedente me caracteriza como uma escritora?
Será que o que eu estou escrevendo é valido?
Será que eu não li isso em algum lugar?
Será que posso usar as palavras dos outros?
Aristóteles acrescenta: ser poeta é ser dramático. É atrair através do prazer uma discursividade em movimento com que a escrita resulta ação após o conflito. Como se a busca de um sentido viesse pelo seu desequilíbrio ou até ausência.
E acho que é por aqui mesmo. A poesia ensina a variabilidade da expressão.
As palavras têm peso.
Dentre estes fatores, e estando numa área que, no geral, ainda não é tão remunerada, é difícil afirmar-se poeta. Então meu consciente me sabota: o que é ser poeta? Tento sair de casa, pensar noutra coisa, procurar algo feito por alguém respeitável na escrita que me sirva de base-exemplo para um começo, e não percebo que procuro o que faço de forma inconsciente.
Eu ia à procura, mas não reconhecia a importância de passar a compreender os materiais em que utilizo na minha escrita de uma nova perspectiva: repetir, variar, improvisar.
Na sua newsletter semanal, Ana Holanda faz uma relação importante entre a criatividade e o amadurecimento. Ela diz:
“A gente se sente parada sem se dar conta que está caminhando. Olha pra frente e para trás e não enxerga evolução. Começa a achar tudo que faz ruim. Fica insatisfeita. Normal. É desse jeito mesmo. Todo momento de mudança, de patamar entre o que era e o que estou me tornando, vem junto com instabilidade. Demanda paciência. Muita. Consigo mesma.
O amadurecimento na escrita acontece da mesma maneira que na vida.”
(Escrita amadurece? Ana Holanda)
E assim a gente vai crescendo, aos poucos.
Deixando tudo ao seu tempo.
Exercícios de escrita criativa: catch e psicogeografia
“encostas
esperados
à parte
ninguém
dobra
outras
frases
a
palavra
o
perigo
as
almas
variáveis
o
autor.”
(O perigo, Julia Peccini).
Ir à procura da diferença é um exercício nômade. Você pode chamar uma pessoa para caminhar ao seu lado durante um percurso, ela terá aspectos da escrita e sons da rua que lhe saltaram a atenção que serão diferentes da sua.
Ao invés de apenas descrever uma realidade, porque não apenas captamos características aleatórias presentes nela? Esses exercícios presentes nos dois poemas desse segundo tópico da nossa conversa é a representação e a combinação do catch e a psicografia, atividade de escrita criativa. Para explicar melhor, a jornalista Carmen Silva diz em seu artigo “Psicogeografia: como os lugares influenciam a forma como nos sentimos” na revista Prevenir que:
“A psicogeografia é a ciência que «desmistifica a relação entre lugar e comportamento», descreve Colin Ellard. É o estudo, como refere o filósofo francês Guy Debord, das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, conscientemente planeado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento dos indivíduos.”
Levando essa ideia para o termo da escrita criativa (e muito disso também vindo da minha interpretação) é a noção de retirar essa questão imposta de que há de se ter um lugar ou até mesmo um tema para que a escrita ocorra, ou que até seja boa.
Claro que ter um espaço e tempo para a escrita é importante, mas não é um requisito obrigatório de se ter. Às vezes as palavras não nos chegam para nos dizer a nós mesmas e ao mundo. Às vezes é preciso descentralizar.
Estamos tão mergulhadas em palavras e elas não nos chegam para escrever o que queremos. Às vezes realizar um poema a partir do som com que o impacto das palavras transmitem ao ouvinte, a partir do improviso com o movimento, faça com que acionemos uma parte do nosso inconsciente que lutava para ser atendido enquanto esperávamos sentados chegar na mesa do escritório.
É exatamente o que eu li alguma vez em algum lugar: a expansão da consciência faz-se com o trabalho sobre a consciência. E é esse exercício de catch/psicogeografia que proponho para você que me lê: faça um caminho pelo seu bairro que você está acostumado a fazer por conta da rotina: uma caminhada até o mercado, uma tarde pela sua faculdade, não importa. Acompanhe o que está à sua volta com um novo olhar. Quero que você, ao longo do seu percurso, vá anotando na ordem todas as palavras que ouvir/ler durante esse trajeto, sem pensar se a construção do poema está fazendo sentido, se aquilo é aceitável ou se as pessoas irão gostar.
Deixe as palavras e o tom serem livres por um momento.
Deixe um pouco de lado o conceito de que tem de haver uma escrita também não criativa e use exemplos disso, como por exemplo manuais de instrução, publicidade que encontrar no caminho para preencher a sua escrita.
Pegando um trecho do livro Roube como um Artista, de Austin Kleon,
“É como o escritor francês André Gide assinalou: “Tudo que precisa ser dito já foi dito. Mas, já que ninguém estava ouvindo, é preciso dizer outra vez.”
É, a partir desse exercício de escrita criativa, se permitir atirar-se ao acaso, no improviso, para se reafirmar.
É se recolocar na escrita como aquele também capaz de encontrar a si e comunicar ao outro.
É criar uma escrita através do corpo.
É reciclar outros tipos de literatura e formar algo novo.
É ver a rua, gostar das brechas e ver um pedaço seu também.
1.
“arrenda-se garagem individual
a sensibilidade pode demorar a chegar
era combatentes
152 gaiolas navegadoras
ah pois
after hours
disponível para take away.”
(Sem título, Julia Peccini).
2.
“paragem
centros de ajuda
casa das caldeiras
entrada
saída
lavandaria
período de funcionamento obrigatório
não demore
retire aqui o seu bilhete.”
(Sem título, Julia Peccini)
EXTRA: Talvez o mundo pare de acabar tão depressa: A poesia de Filipa Leal e Anne Carson
“Há aqui muito que ver e que sentir.
A metáfora ensina a mente
a gozar o erro
e a aprender
a justaposição daquilo que é e daquilo que não é assim.”
(Ensaio sobre aquilo em que mais penso, Anne Carson)
Não é novidade para ninguém que eu sou aderente à ideia de que escrever é repetir e variar. Com as nossas palavras, mas também com as palavras dos outros, Filipa Leal e Anne Carson são as poetas que mais li nas últimas semanas que me fizeram sentir essa forma de ver a escrita.
“O irmão de Gérion achou uma nota de dólar americano
e deu para Gérion. Gérion achou um pedaço de um antigo capacete de guerra e escondeu.
Esse também foi o dia
que ele começou a sua autobiografia. Nessa obra Gérion apontou todas as coisas de dentro
particularmente o seu heroísmo
e morte precoce para o desespero da comunidade. Ele omitiu bacanamente
todas as coisas de fora.”
(Autobiografia do vermelho, Anne Carson).
As palavras são manipuláveis. Mas será que são capazes de manipular o desejo?
Será que é essa consciência que une a minha palavra a um público? Será que as frestas são nada mais, nada menos que locais de início e fim de uma língua?
Abrir os olhos para um novo sentido do que o já visto.
“A poesia, quando é poesia, não tem passaporte, nem país, nem fronteiras. A poesia não é de língua portuguesa, ou inglesa, ou japonesa. A poesia fala a sua própria língua. E há também, entre todos os poetas do mundo, a semelhança de corrermos o mesmo risco: o de vivermos, como dizia o “vosso” Paulo Leminski, de “um inutensílio”. Como Leminski deixou dito: “É muito mais lucrativo você abrir uma banquinha e vender banana do que fazer poesia”.
(Filipa Leal, em entrevista à Bravo)
(Vêm à quinta-feira, Filipa Leal)
A partir de trechos, deixo aqui um lembrete para vocês procurarem ler essas duas autoras contemporâneas, e também um exercício extra de escrita: escrevendo um poema a partir desses poemas em anexo. Um exercício de escrita criativa ensinado pela professora Graça Capinha, apelidado de “A sétima palavra”, mas adaptado por mim:
Primeiro passo: Você deve ir na sua estante e pegar os livros que você mais gosta e que sabe que tem fragmentos grifados.
Segundo passo: Juntar dois ou três fragmentos (de autores diferentes).
Terceiro passo: Anotar numa folha de papel a sétima palavra de cada fragmento, em ordem de leitura, até o final.
Quarto passo: Após anotar as palavras, vá montando o seu poema. A única regra é que as palavras precisam estar na ordem em que você as coletou no terceiro passo.
E pronto! Um exemplo (utilizando os poemas desse terceiro tópico da newsletter):
1.
que
a
justaposição
não
note
capacete.
2.
planeamos
paris
à
porta
sábado
não
sabes
talvez
paris
que
choras
contente
vou
mesma
só.
(Sem título, Julia Peccini).
Alguns outros:
Gabi Abreu e Ana Cristina Pereira recitando poemas do livro Vem à quinta-feira:
Músicas que fizeram parte deste mês:
Podcasts que me fizeram companhia:
Leituras do mês de maio:
Como Prega um Bardo na Babilónia, António Fojo.
A Vida não é Útil, Ailton Krenak.
Fósforos e Metal sobre Imitação do Ser Humano, Filipa Leal.
Autobiografia do Vermelho, Anne Carson.
Plainwater, Anne Carson.
Ensaio sobre aquilo que mais penso, Anne Carson.
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte no Frestas #09.
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 23 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Autora dos livros Aqui cabe um Poema (2021), Nem só de amor vive Afrodite (Philos, 2022), Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua (Urutau, 2023), te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.
vou experimentar os exercícios propostos, escrita criativa nunca é demais! essas propostas são tão boas, poderiam ser uma proposta de escrita em algun(s) mes(es) do coletivo... você já pensou em sugerir no formulário para propostas de escrita?
Que texto mais lindo Julia. O que é originalidade não é mesmo? Acredito que estamos o tempo todo escrevendo nossa visão de mundo, que envolve muitas outras que chegam até nós e se transformam, diante do nosso repertório particular e dessa mistura toda, nascem coisas belas e aparentemente inovadoras, mas que são na verdade, uma parte do todo ❤️