Frestas #07: Se as mulheres param, o mundo para.
Existência e resistência nas vozes narrativas na literatura de autoras negras brasileiras contemporâneas. Entrevista com a escritora Mariana Veloso.
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
Para a leitura dessa edição, deixo aqui o episódio de Jarid Arraes no podcast Histórias Diversas, e o episódio de Djamila Ribeiro no podcast Daria um Livro, de Pedro Pacífico, que foram os epicentros de toda essa edição.
“A questão não é escrever, é publicar”: A falta da descentralização na publicação de mulheres negras brasileiras contemporâneas no mercado editorial brasileiro.
“As pessoas, muitas delas não tem repertório, e isso não é um problema só de leitores que leem certas coisas, isso é um problema também de curadorias, de eventos, de prêmios, sabe? Repertório é você conhecer a arte que está sendo feita além daquela bolha que você cresceu e aprendeu a ler, aprendeu a conhecer e você parece que não expande, você só fica nas mesmas coisas. Então essa descriminação, não ter nordestinos, não ter mulheres, pessoas negras, nem indígenas, nem do norte é falta de repertório. E como você pode trabalhar com arte e não ter um repertório? Principalmente um repertório que caracterize a diversidade brasileira. Então é um problema que a gente tem que levantar, mas saber também que o pensamento crítico tem que ser acessível, senão as pessoas não vão nem questionar, como eu não questionei enquanto estava crescendo também.” (Jarid Arraes, Histórias Diversas Podcast).
Você já parou para pensar em quantos autores negros brasileiros você lê por ano? Em quantos autores negros brasileiros são publicados por ano? Será que há muita diferença de publicação entre uma grande e uma pequena editora?
Por um lado temos a Editora Intrínseca, uma das maiores e conhecidas editoras do país. Dos 133 livros disponíveis no catálogo online da editora Intrínseca e publicados no ano de 2022, não há livros de autoras mulheres negras brasileiras. Além disso, dos 19 livros mais vendido em 2022 da editora, segundo o Publishnews, nenhum livro são de autores negros brasileiros.
Em contrapartida, ao olhar editoras independentes e menores é possível ver um número maior em seu catálogo online e revistas literárias, além de editoras especializadas e com o objetivo de publicar apenas autores negros, como a editora Malê, a Aziza Editora, e a editora Kitembo, por exemplo.
E das editoras grandes que estão publicando nomes importantes da literatura feita por mulheres, autores negros e indígenas, muitos vieram de forma recente e através da comprovação de venda e de público de narrativas vindas de editoras independentes que apostam e continuam apostando nesta descentralização.
“E também acontece muito de, as autoras principalmente, lésbicas, bissexuais, negras e nordestinas, que estão publicando muita coisa interessante e muito incrível, estão publicando em editoras muito pequenas ou independentes, e aí elas não chegam nos lugares que os leitores geralmente acessam. Então fica, novamente, essa falta de repertório.” (Jarid Arraes, Histórias Diversas Podcast).
Sim, estamos consumindo grandes e necessários nomes da literatura contemporânea como Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Ninna Rizzi, Mel Duarte, Djamila Ribeiro, Natasha Félix, Maria Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, dentre muitos outros. Porém, grande parte desse por que de estarmos consumindo foi que são histórias que chegaram até nós, muitas vezes, pelas livrarias e centros comerciais de fácil acesso. Há diversos outros autores prontos para serem lidos, mas que são oprimidos pelo grande polo editorial e custos de produção do livro. Uma pluralidade de autores prontos para serem reparados fora das grandes massas de distribuição editorial.
E nós, leitores, o que estamos fazendo em relação a isso?
“Eu sempre falo que o problema do racismo é um problema também de referência, de iconografia de pessoa negras. Na escola a gente aprende que as pessoas brancas fizeram tudo pelo mundo, descobriram tudo, inventaram tudo, lutaram todas as batalhas pelos direitos humanos, enquanto as pessoas que não são brancas fizeram tudo isso em outros países, em outras regiões do mundo e elas não são creditadas, citadas, reconhecidas. E essa falta de enxergar pessoas que não são brancas como agentes de transformação na humanidade, como pessoas criativas, inteligentes, isso faz com que o racismo seja enraizado desde criança, porque a gente aprende desde criança que as pessoas que não são brancas não fizeram nada pelo mundo. E isso é mentira.” (Jarid Arraes, Histórias Diversas Podcast).
Voz e memória na poesia de mulheres negras brasileiras contemporâneas: Entrevista com Mariana Veloso.
“Refletindo sobre as representações de negritude, amor, Axé, cura e afrofuturismo em poemas de autories brasileires contemporâneus, traremos uma abordagem que revoluciona as concepções tradicionais de literatura negra, forjada na academia por pesquisadores brancos.” (Tatiana Nascimento).
É o que Viola Davis uma vez disse: “A unidade negra foi construída em cima do silêncio da mulher negra.” Em uma sociedade em que o racismo ainda é cultivado principalmente nas nossas bases da educação, não dar o espaço ou a voz ou até reconhecer o privilégio da pessoa branca é, de forma velada ou não, influenciar o silenciamento que mulheres negras sofreram quase toda a vida e ainda sofrem.
É essencial e obrigatório que uma pessoa branca tenha responsabilidade na fala e na pauta sim, mas muito mais que isso é estar exposto a ouvir. Não permitir um lugar de escuta é também influenciar a objetificação e a ausência do reconhecimento da publicação de pessoas negras na literatura, visto que:
“Falar de literatura é falar de racismo. É falar de processos históricos que nos deixaram apartadas de ter acesso a espaços de educação, a espaços de leitura.” (Djamila Ribeiro, Daria um Livro Podcast).
A poesia é um ato político. A poesia apresenta e tenta uma válvula de escape a partir do espaço público: Pela literatura escrita; pelas redes sociais, com os instapoetas; e nos espaços públicos com o poetry slam e o slam das minas.
Os slams passaram a ser um espaço seguro de acolhimento e de voz principalmente de mulheres negras e pertencentes (lgbtquia+). E são nesses lugares como no slam das minas que a mulher sobe no palanque, um de muitos que deveriam ser seus espaços por direito. Que conta expressa com o seu corpo a sua voz.
Assim, é a relação entre a subjetividade e o coletivo, de forma intercalada com a performance poética do slam e também com a poesia escrita, a tentar, de certa maneira, dar voz e ressonância ao autor e também ao leitor, de forma que a memória do presente e do passado seja um elemento de esperança e de reafirmação de suas raízes e valores da comunidade em que vivem.
“E eu acho que a gente também começou a mostrar a forma também de fazer, de não fazer só eventos em livrarias. Isso foi uma escolha minha, de fazer eventos em espaços públicos, com coletivos porque muitas pessoas nunca entraram numa livraria, as pessoas não param para pensar. Às vezes é tão natural a realidade delas, mas tem uma série de pessoas que às vezes se intimidariam em entrar em uma livraria, a depender do lugar social que elas vêm.” (…) “Era uma demanda reprimida. As pessoas também queriam se ver naquilo, naqueles livros. Elas talvez não se identificassem com o que estava sendo feito ali a tantos e tantos tempo.” (Djamila Ribeiro, Daria um Livro Podcast).
Ninguém aprende nada sozinho. Ninguém escreve sem ter o hábito da leitura. Ninguém encontra outra pessoa sem voz. Ninguém é “alguém” no mundo se não procurar conhecê-lo. Principalmente, ninguém é alguém no mundo sozinho.
A literatura contemporânea se mostra como um jogo de significados ausentes. Uma tentativa/forma de retomar um discurso, dar protagonismo a essas vozes e essas vivências. Um “(...) exercício a favor da memória, contra o apagar dos registros ou contra o ruído generalizado que pretende sobrepor todos os ritmos dissonantes.” (Pereira, 2010, p.34, citado em Lima, 2012).
É preciso do outro, é necessário conhecer a vivência do outro para crescer também e, por isso, a escolha do quem lemos é essencial. Ver na voz das mulheres
um testemunho
encontro existência.
um corpo memória
fio trajeto.
um risco
a raiva
o princípio.
Mariana Veloso nos trás um pouco dessa realidade inconsciente na leitura. Ainda não lemos mulheres o suficiente. Um fato curioso, visto que a maior parte dos leitores são mulheres e que há uma superioridade de livro de autores masculinos nas livraria. Além disso, são essas mulheres leitoras e autoras que compram maioritariamente livros escritos por homens. Mariana Veloso me diz: “A leitura de mulheres, com intenção e assiduidade, é uma prática recente para mim. E creio que seja um momento crescente com muitas da minha faixa etária. Participando do Coletivo Escreviventes, tenho lido obras de minhas colegas, elas me inspiram e me apresentam novas possibilidades e aprendizados.”
E como é essa experiência para as escritoras estreantes? Para responder essa e outras questões, uma conversa com Mariana Veloso, autora premiada em terceiro lugar na categoria poesia, com menção honrosa com o poema Amor Prematuro, no Prêmio Conceição Evaristo de Literatura Negra, da editora Metanoia.
Alguns outros:
Esse post que a Maria Ferreira fez com a Jess para pensar o antirracismo no meio literário tem que ser lido!
Episódios extras que ouvi esse mês:
Leituras do mês de abril:
O avesso da Pele, Jeferson Tenório.
Canção derruída, Mar Becker.
Código do Direito de Autor e Direitos Conexos, Patrícia Akester.
Coletânea de Poesia, Prêmio Conceição Evaristo de Literatura da Mulher Negra.
A Paixão Segundo G.H, Clarice Lispector.
Exposição de curadores e autores negros para repensar a colonização do brasil: Um oceano para lavar as mãos – Philos (revistaphilos.com)
Músicas que ficaram em repeat no meu spotify:
Indicação de livros de autoras mulheres negras brasileiras que já li e que estão na minha lista de futuras leituras:
Heróinas negras brasileiras em 15 cordéis, Jarid Arraes (Ed. Seguinte).
Colmeia, Mel Duarte (Casa Philos).
Olhos d´água, Conceição Evaristo (Pallas Editora).
Até aqui, Lubi Prates (Ed. Peirópolis).
Quarto do despejo, Carolina Maria de Jesus (Ed. Ática).
Um Exu em Nova York, Cidinha da Silva (Pallas Editora).
Pequeno Manual Antirracista, Djamila Ribeiro (Ed. Companhia das Letras).
Solitária, Eliana Alves Cruz (Ed. Companhia das Letras).
Água de Barrela, Eliana Alves Cruz (Ed. Malê).
Poetas negras brasileiras, uma antologia, org. Jarid Arraes (Editora de Cultura).
Antologia As 29 poetas hoje, org. Heloisa Buarque de Hollanda (Ed. Companhia das Letras)
Vozes de retratos íntimos, Taiasmin Ohnmacht (Ed. Taverna).
Quando me descobri negra, Bianca Santana (Ed. Sesi-SP).
Talvez precisemos de um nome para isso, Stephanie Borges (Cepe Editora).
O pacto da branquitude, Cida Bento. (Ed. Companhia das Letras).
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 08!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 23 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Meu novo livro, Nem só de amor vive Afrodite, está disponível para compra pela Revista Philos e te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.