Frestas #06: A inovação é acidental.
A poesia de Bia Rodrigues, devaneios dos meus 23, o esquecimento das poetas na história e alguns outros, tudo junto e misturado.
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
Para a leitura dessa edição, deixo aqui as músicas que me fizeram companhia no embaralho desses dias:
Início dos meus 23
No mês de março li uns trechos do trabalho de Matilde Campilho. Os poemas dela me disseram que a poesia salva o minuto, e que estamos aqui “para dançar um pouquinho/sobre os escombros.” Essa simples leitura me despertou alguns questionamentos na escrita. Se a inovação é acidental (e eu acredito que seja),
Como que a linearidade surge?
O que é o minuto?
Há como escapar do significado?
Como que se explora um corpo?
Se a inovação é acidental, não há tempo mais para desculpas.
(João Coutinho. Lisboa, Cais das Colunas, 2016)
Esse mês eu fiz 23 anos e Herta Muller fez eco na minha mente. “Não sabemos como o vivido age numa pessoa”, mas podemos ainda observar seus traços.
E que coisa boa essa de estar viva. De ver o mundo dançar fora da janela. De ler e pensar em alguém.
Que coisa boa essa de ganhar um pouco de jovialidade no corpo que cobra demais. Que pensa até demais. Que procura a saída de emergência, testa a água antes do mergulho.
Mas sim, olha, que coisa boa essa de estar viva. Que procura o embalo, a feira na praça XV, o samba de roda no centro do Rio. Que coisa boa essa surpresa de se descobrir no movimento nem tão passado e nem tão futuro. De estar em casa e se sentir inédita.
Que coisa boa é essa de ver o corpo não mais corpo que outros corpos-matéria-gente-frenesi e enfrentar o aparecimento dos detalhes. Um sinal no quadro que desvenda o mistério.
Alguns me disseram que 23 é a idade inicial da ressaca com 4 baldes de cerveja; outros me disseram o quanto eu ainda tenho tempo para deixar mais coisas nesse mundo. Meu avô, depois de ter cruzado o oceano com apenas 15 anos, me disse que foi só com 23 que o mundo finalmente se abriu para ele em poucos metros quadrados.
Que assim o seja.
Eu vou ali, apareço.
À imprecisão do tempo, ao corpo que se move e se torna vida. Explorando a pele, desafiando o minuto, andando em curvas.
Eu vou ali, apareço.
Escrevendo sem saber ainda muito das coisas.
A poesia de Bia Rodrigues
tenho raiva
e dentes
rosno e levo
mais um cigarro à boca
alimento morcegos.:
sou um bicho brasileiro
(Zoológico Brasilis, Bia Rodrigues)
“Escrever enquanto ouço vespas na mente” foi a frase da newsletter de Jéssica Lima que ficou ecoando enquanto conversava esse mês com a poeta Bia Rodrigues.
Sabe aquele famoso questionamento: Se ficarmos muito tempo pensando em alguém, será que ela sente? Foi assim que me senti depois da troca de conversas com a escritora e poeta Bia Rodrigues. É que é muito louco pensar em como há tantas pessoas que estão juntas num mesmo pensamento, em um mesmo espaço de desejo criativo, sermos tão próximas e tão diferentes umas das outras e não termos ideia de quem somos.
Enquanto uns se escondem em se mostrar, outros precisam colocar pra fora aquilo que pensam. Aquilo que sentem.
Bia Rodrigues é corpo que se movimenta na água, mas que também se dissolve. Flutua. Experimenta. E é na experiência que se deixa os seus vestígios.
A poeta poetiza no espaço da página e diz: tenho raiva e dentes. Não se importa em solidificar o sentimento.
A poeta poetiza no espaço da página e diz: um cigarro à boca. Desloca as frases, transporta ao corpo, humaniza em um trago a cadência, no outro o impulso.
A poeta poetiza no espaço da página e diz: somos bichos brasileiros. O tempo do cotidiano nos atravessa e o verso não tem medo de se alastrar.
Um pedacinho de quase tudo pulsa uma imagem, clama por uma colagem.
Onde?
O corpo carrega o tempo.
Tenta sorrir. Olha, procura, se cerca em brasilidades.
Habita o incômodo das transições.
Respira.
Que crueza e que dádiva!
Somos realmente bichos brasileiros.
Tertúlia de março, especial dia das mulheres: As poetas esquecidas na história
Manuela Amaral (1934-1955)
Na luta da posse
meu corpo guerreiro
batalha no teu
Meus beijos em seta
percorrem a meta
atingem loucura
No corpo liberto
da minha procura
tu és o limite.
(Poema 11, 1974).
Patrícia Galvão, PAGU (1910-1962)
Nada nada nada
Nada mais do que nada
Porque vocês querem que exista apenas o nada
Pois existe o só nada
Um pára-brisa partido uma perna quebrada
O nada
Fisionomias massacradas
Tipóias em meus amigos
Portas arrombadas
Abertas para o nada
Um choro de criança
Uma lágrima de mulher à-toa
Que quer dizer nada
Um quarto meio escuro
Com um abajur quebrado
Meninas que dançavam
Que conversavam
Nada
Um copo de conhaque
Um teatro
Um precipício
Talvez o precipício queira dizer nada
Uma carteirinha de travel’s check
Uma partida for two nada
Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas
Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava
Um cão rosnava na minha estrada
Um papagaio falava coisas tão engraçadas
Pastorinhas entraram em meu caminho
Num samba morenamente cadenciado
Abri o meu abraço aos amigos de sempre
Poetas compareceram
Alguns escritores
Gente de teatro
Birutas no aeroporto
E nada.(Nothing, 1962, Patrícia Galvão - PAGU).
Maura Lopes Cançado (1929-1993)
pausa:
permitam-me destruir o livro do Sagan.
É a seda pura que deve nos envolver; ter
música, no momento do beijo.
Inclinada, a rosa lembrará a brisa,
as grades rendadas, o jardim.
Além do mar, outros casais existem.
A noite nos destrói pelas esquinas (repetindo-se
e envelhecendo como almas.
(permitam-me destruir o livro do Sagan).
Alguns outros:
Márcia Falcão e a obra “Posição 10”, da série “Ioga Psicológica” (2022), junto de muitos outros artistas estão presentes na curadoria da Revista Philos sobre as 25 melhores obras e artistas da SP-Arte 2023.
Alexia Carpilovsky declamando seu poema “brasil circa 2020” no cep 20000.
Episódio do mês:
A Casa Bicho, esse lugar que amo demais no coração do Rio está cada vez mais na boca do povo, e a exposição desse mês, O Futuro é Ancestral, de Kwaku Ananse Kintê, com curadoria de Carla Oliveira e Luyza de Luca e texto de Mélanie Mozzer, me bateu uma saudade grande. As exposições são gratuitas, com bons drinks, uma vista insana pro Cristo e muita arte. Vale super a pena a visita.
Leituras do mês de março:
Ringue, Matilde Campilho.
Comércio livreiro em Portugal: estado da arte na segunda década do século XXI, Rui Beja.
O mistério da beleza, Nuno Júdice.
Eye Level: Poems, Jenny Xie.
Tudo sobre o amor, Bell Hooks.
Tem tanta coisa a mais que eu queria falar aqui, tantos artistas brasileiros emergentes pra conhecer que, para terminar com chave de ouro a edição desse mês, deixo um post de Gabriel Carvalho resumindo o sentimento que a Frestas (e todos que trabalham com arte) possuem:
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 07!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 23 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Meu novo livro, Nem só de amor vive Afrodite, está disponível para compra pela Revista Philos e te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.