Frestas #05: Dois exercícios criativos para ampliar a sua escrita.
Como a adaptação em produzir o desconhecido amadureceu o meu processo de escrita. Resquícios do que li, ouvi e guardei: Tertúlia de fevereiro.
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
Hoje a Frestas comemora a sua quinta edição e os seus 50 inscritos. Obrigada! Obrigada por, de pouquinho a pouquinho, estarem aqui, com o interesse para essa troca tão necessária. Atrás dos números que me mostram esse alcance quero, ainda que estamos apenas entre nós, conhecê-los melhor.
Essa edição é apenas uma de muitas futuras edições em que faremos literatura juntos.
O mundo se me olha. Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; neste deserto as coisas sabem as coisas. (…) o material do mundo me assusta. (Paixão segundo G.H, Clarice Lispector, p.50).
Assim como tocar numa edição de livro antiga, escrever sobre a escrita é um desafio.
Será que eu sei sobre isso a ponto de compartilhar com alguém? Será que meus devaneios fazem sentido? Será que isso servirá de potência para uma geração? Independente das supostas síndromes do impostor que todo autor há de ter, a voz, a partilha com o outro, importa, principalmente para se permitir (re)aprender também com as ações realizadas.
É por isso que estamos sempre em busca. Sabemos que nem tudo precisa ter suas especificidades, nem tudo precisa ser tão profundo. Uma história não necessariamente precisa ter um antecedente, ou até um motivo final. Porém, os jogos com as palavras são precisos para movimentar a prática com que a irregularidade da poesia surge.
Há alguma coisa que precisa ser dita, não sentes que há alguma coisa que precisa ser sabida? (Paixão segundo G.H, Clarice Lispector, p.63).
Para desejar outras linguagens possíveis aos nossos textos, os exercícios de escrita criativa são uma ótima alternativa.
“O que pode a palavra escrita?
O que pode um texto?
Quantos sentidos existem num só sentido?
O que pode os encontros mediados por palavras?
O que pode a literatura?
Será que vamos conseguir mudar o mundo?”
Esses e outros questionamentos da Revista Terceyro Mundo exemplificam muito o porque que esse quinto volume da Frestas é importante. Sabemos que a escrita é um trabalho solitário, mas muitas vezes o deixamos de fazer principalmente por conta disso. Por medo do desconhecido. Além da escrita ser, pelo menos no meu caso inicial, uma coisa feita por mim e para mim, tentar algo novo, deixar amadurecer a ideia, sair da zona de conforto que para muitos é a escrita é pensar que, a longo e a curto prazo, tem as suas gratificações.
O que nos interessa na geração de hoje? Por que sentimos que estamos perdendo sempre algo? Por que interrompemos nossa opção de escolha indo exatamente para o gênero da estante da livraria que estamos acostumados a ler?
Paula Maria já dizia, “o estado de escrita é estado de presença. (…) Vou estar aqui, esquisita, inquieta, impermanente. Contrariar o destino, driblar as estatísticas, fazer o que diabos eu quiser: por pura teimosia.”
Nossa geração faz 349 coisas em uma. Queremos trilhar o nosso próprio caminho, mas muitas vezes deixamos de lado o nosso lugar em reflexo ao sucesso do outro, ao caminho que leva ao sucesso do outro. E apesar da escrita ser um espaço de criação solitária, pegar no celular também o é.
É o que eu disse com uma colega do mestrado esses dias: as redes sociais, apesar de todos os fatores positivos como por exemplo a questão de procurar conteúdos mais rápidos para o nossos dias imediatistas, podem muitas vezes trilhar os nossos caminhos, as nossas leituras, os nossos gostos. Pegamos como espelho a quantidade de likes de um perfil e esquecemos de pesquisar a nós mesmos. Ao nosso passado, ao sentimento de identificação que tínhamos e que hoje pode mais não ser o mesmo.
Até porque quantas pessoas, personalidades e ideias já temos em nós e não sabemos? É a ordem natural das coisas, a perfeita trajetória incerta.
Permita que a escrita seja uma ferramenta para a abraçar.
“Perder-se é um achar-se perigoso.” (Paixão segundo G.H, Clarice Lispector, p.77).
Deixo aqui sugestões de escrita que foram importantes para mim no desenvolvimento do meu próprio ato poético. Para quem tiver interesse em tirar da gaveta alguns originais para o ano de 2023, este é o meu testemunho, com práticas de escrita que desenvolvi lendo vocês e/ou ao longo da minha vida acadêmica.
Exercício 01: A imitação da realidade e a infância.
Se eu ainda quiser poderei, dentro de nossa linguagem, me perguntar de outro modo (…) que ideal me prendia ao sentimento de uma ideia? (Paixão segundo G.H, Clarice Lispector, p.55).
No ângulo das famosas perguntas que se ouve quando criança, como “o que você quer ser quando crescer?”, todo mundo sonha com medo. A ânsia de atravessar o limite da realidade para o imaginário é, ao mesmo tempo, um desejo e um mistério.
O que é a ideia?
O que é o sentimento?
Vamos lá, procure um álbum de fotografia. Folheie, relate a memória, conte seu contexto.
Leia o que escreveu na parte de trás da foto, verbalize o não dito.
Só escreva.
Siga a dica de Jorge Luis Borges: “Qualquer palavra pressupõe uma experiência partilhada. (…) Escrevo «quase» porque não há felicidade ou dor que sejam apenas físicas, intervêm sempre o passado, as circunstâncias, o espanto e outros fatos da consciência” (Atlas, p.39).
Escrever, por um lado, é moldar algo que se assemelhe ao corpo. Por outro, é a costura invisível, o ponto criativo de casear, dentro do próprio fazer, que permite na própria costura uma abertura.
Quando o assunto é poesia em ambiente acadêmico, a Poética de Aristóteles foi o primeiro livro que me pediram para ler. E com ele, veio o questionamento: Se a poesia atual apresenta-se, muitas vezes, pela subversão das normas, e se todas as formas que existem são imitações da realidade, como que se desforma uma língua?
Como que se constrói uma história?
Não pretendo aqui entrar sobre o que Aristóteles discorre sobre a comédia e a tragédia, e sim para o sentido e, principalmente, a necessidade de sua ausência. Da produção do prazer pelo retorno à memória e à recriação, visto que, a partir do que eu não reconheço, eu posso ir além, da mesma forma com que a revisitação, a releitura e as imagens sempre irão produzir outras formas de significação.
“Olhando-as, aprendem”, diz Aristóteles. Ao invés da preocupação com a formalidade do texto, ou com as descrições das imagens, há o esquecimento em dizer aquilo que está presente na evolução do próprio autor: no que está ao redor e na sua interiorização das formas de ver.
Portanto, nada melhor do que voltar à infância.
Minha professora na licenciatura, Graça Capinha, uma vez disse que a primeira coisa importante é olharmos para a realidade para podermos olhar para as imagens da realidade. Ou seja, passar a ver as coisas de uma outra maneira, de um novo ângulo. Também, disse que há uma extensão da consciência, e passamos a ter um conhecimento outro, através dessa experiência de temor e compaixão, que tem a ver com a organização das formas. Segundo ela, “Aquilo que o poeta faz é ensinar a forma da coisa, que é um momento de aprendizagem, de olhar para a realidade.”
Dessa forma, o exercício de escrita que proponho consiste em pegar numa memória da infância e imitar para a sua realidade atual, utilizando a repetição e a variação para que saia algo novo, sem destonalizar ou desviar da lembrança. E que tal mudá-la para outro formato na qual não está acostumado a escrever? Com menos pontuação, letras maiúsculas, abusar do texto mesmo.
Deixo aqui o meu poema/prosa poética, presente no meu livro mais recente, Nem só de amor vive Afrodite (2022):
(p.17 do livro Nem só de amor vive Afrodite, Julia Peccini)
Exercício 02: A repetição na variação. A primeira letra.
Existe um texto puro?
Dá para ensinar alguém um nome?
Dá para soletrar um som?
O que é o texto fora da página?
Visto na substrack Toranja, peguei um exercício de inspiração durante um bloqueio criativo de algumas semanas, no meio de tantas perguntas (talvez sem resposta) e gostaria de compartilhar. Basicamente, o desafio é escrever um poema em que cada verso se inicie com a mesma letra. Aqui vai o meu:
ao seu serviço
apoio ao cliente
a primeira letra
apoia a criação
autônoma
artista escreve para
aprender por aí
algo ou
alguém
aurélio a
assiste sobreviver na
autoajuda
ainda procura conhecer
a própria língua
apaixonada em cadeia
as letras nadam em elo
até
aqui e sobrevivem
as refiro como
ato e reciclamento de vistas
aurélio
as chamam de
artista.
(Sem título, Julia Peccini).
Tertúlia de fevereiro: Resquícios que li, ouvi e guardei
Aos devaneios e carnavais de Olinda, um poema de João Innecco:
baby, acho que este carnaval
pode ser isto mesmo
:
uma grande sutura
sabe?
entre banhos de mangueira
y purulências do coração
à beira do mangue eu
alinhavo este bloco como
quem insiste desesperado
em não ter o corpo
vencido, o peito fechado
& sigo suando a solidão
subindo ladeiras
ou 9 andares no breu
certo de que há um passo
após um beijo
após um susto.
(Recife, verão/2023).
Ao horário do sebo e o momento da queda, um poema de Louise Bourgeois:
Meu trabalho inicial é o medo de
cair. Depois se tornou a arte de cair.
Como cair sem nem se machucar. Mais
tarde é a arte de se manter no ar. (114).
Ao tempo de estar no mundo, um poema de Natalie Diaz:
O que é a solidão, senão uma luz
inimaginável, medida em lúmens -
uma conta de luz que deve ser paga,
um táxi flutuando através de três pistas
com os postes acesos, douradas de querer.
Às duas da manhã todas as pessoas em Nova York
estão vazias e procurando por alguém.
(Manhattan é uma palavra lenape, Poema de amor pós-colonial)
À inacabada mudança, um poema de Jéssica Lima
às vezes só precisamos arredar o pé de
casa
do que não existe
das certezas
atravessar pontes sem saber aonde vão
te levar
beijar lento
ficar parado enquanto recebe um cheiro
morar no abraço
fazer um dengo
rir de si
deixar a chuva molhar o piso
contemplar o inacabado
dançar com a gal costa
mudar a direção
sair
para entrar.
(O espaço entre nós, Jéssica Lima)
Ao incêndio, um poema de Daniel Faria
Mãe, sinto a boca tremer. São as palavras. É do cigarro que me queima. Eu não quero fumar.
Este frio foi o incêndio de uma mão sobre a minha boca. Um carvão de fogo ardendo mais do que o silêncio. São as palavras, mãe. Eu não quero falar.
(Sétimo dia, Daniel Faria)
Aos nomes, um poema vocalizado de Ninna Rizzi: Diáspora não é lar.
Fazer corpo, posfácio de Espáduas, por Francisco Mallmann:
fazer corpo e fazer escrita parecem mesmo contraditórios para quem prefere acariciar o mistério sem o domar. eu imagino. eu tateio. eu misturo. eu me crio, te criando. eu não sou só. eu tramo os meios de nos tocarmos. eu tranço os nossos cabelos. eu sei que as palavras entram na corrente sanguínea, porque eu sei que as palavras fazem vida e morta e vida e morte e fazem - eu te li. e você morreu na década em que eu nasci - eu quis que você vivesse, mas não é bem assim. não é assim o tempo daquelas que sabem que é espiralado isso, que nos fizeram acreditar ser retidão. é pela não linearidade que me irmano a você. porque fazer irmãs, amor e confidências não é e nem pode ser pelo tempo da brutalidade. estamos nós, dedicadas a criar algum lugar para nossas existências sem lugar. e parece que é na poesia que alguma coisa acontece.
Alguns outros:
As músicas que me fizeram companhia no embaralho desses dias:
Curta “Isso não é tudo”
Leituras do mês de Fevereiro:
Histórias da Terra e do Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen.
Casa Tomada, Julio Cortázar.
A queda de um anjo, Afonso Cruz.
Verity, Collen Hoover.
Cidade Líquida, João Tordo.
Daisy Jones & the Six, Taylor Jenkis Reid.
Lean Publishing, Peter Armstrong
Episódios que foram necessários esse mês:
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 06!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 22 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Meu novo livro, Nem só de amor vive Afrodite, está disponível para compra pela Casa Philos, e te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.