Frestas #04: Colagem, desconforto e necessidade: A versatilidade dos objetos.
A poesia como elemento orgânico e novos poetas brasileiros contemporâneos: Entrevista com Thaís Campolina em Eu investigo qualquer coisa sem registro.
(ATENÇÃO! ESSA NEWSLETTER É PARA SER LIDA NO SITE! PELO TAMANHO, PODE TER SIDO CORTADA NO EMAIL!)
Olá, bem vinda/o!
Esta é a Frestas, uma newsletter pensada em deixar sugestões (no fone e no olhar) de feitos que nos aquecem o peito e que, de vez em quando, deixamos arder. Conjuntos de palavras que atravessam, pairam e fazem parte do meu processo de escrita, que deixo também.
Colagem, desconforto e necessidade: A versatilidade dos objetos
na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.
(Lavoisier, Carlos de Oliveira).
Quase um ensaio acerca das intertextualidades presentes na escrita, a newsletter desse mês tem como foco as remendas que permeiam os discursos poéticos.
É responsabilidade do escritor de perceber que, ao tentar trazer um equilíbrio entre a variação e a repetição na escrita, ou seja, ao desejar que a nossa arte alcance novos públicos, o espaço da página também precisa se transformar num espaço de resistência. E isso é uma tarefa difícil, principalmente em relação ao poder que a linguagem tem sobre cada escritor.
A linguagem nunca foi nossa. Herdamos a partir do passado, da memória, de toda essa pluralidade de construções que surge no diálogo e discursos entre a leitura e a escrita. Mesmo que ela esteja carregada de significados que não fomos nós que colocamos, muda de acordo com cada comunidade, contribuindo para a multiplicidade de objetos e, desde já, multiplicidade de eus passíveis de construção.
Com uma maior força a partir do nascimento dos “ismos” nas interartes, a colagem é um processo de fragmentação que influencia não só a construção de novos sentidos, mas o choque ao reconhecer elementos já ali presentes.
(Poema-colagem de Rui Pires Cabral, 2014:a 143)
O poeta Lucas Argel uma vez disse que “a poesia é onde a linguagem dói, e para alcançar o mistério a que ambiciona, a poesia precisaria rasgar os limites da linguagem e sair de dentro dela. Mas sabe que, no momento em que o fizer, deixará de existir.” Agora vem o meu questionamento: Se as nossas resistências é a nossa forma de metamorfose, é possível sair de dentro de uma linguagem? A arte da colagem é fazer com que se crie espaço para que as palavras respirem. Mas se a própria escrita funciona a partir da associação dos seus elementos textuais presentes na linguagem de uma comunidade, como diferenciar o processo de colagem poética, ou seja, das várias vozes presentes nos vários versos de tempos distintos, com o próprio ato de escrever poesia?
A criatividade entra quando escrever poesia se torna sobreviver na linguagem “sem saber se a colagem é para a poesia ´um abrigo, ou um abismo´” (Cabral 2012: 13). O recorte, assim, surge junto aos espaços em branco. Convida, assusta, conversa. Procura uma sequência, pede para ser lido.
Lê.
Um tempo de um outro tempo, olha. Encontra e se encontra em um corpo. Um corpo que não é só um corpo, é forma, fundo, memória.
Identidade.
“Recortada do nosso modo de existir, fracionada em porções, distribuídas nos fluxos migratórios do tempo”, como diz Bia Rodrigues. Cavando metáforas, procurando visibilidade. Buscando dentro dos muitos eus, algo que a poesia, incógnita por natureza, não explica.
É mistério que, perto ou longe de alguma vez ser desvendada,
você precisa
habitar as elipses
precisa dissecar
o sapo da poesia
– não abole o poço.
(Casino, Angélica Freitas)
Quantas vozes conseguimos tirar de um só poema?
As colagens memorialistas de Thaís Campolina e o livro Eu investigo qualquer coisa sem registro
Conheci a Thaís a partir de um coletivo de mulheres que faço parte, chamado Coletivo Escreviventes. Depois de um tempo, seu poema em um dos desafios de escrita do coletivo me chamou a atenção, que posteriormente me levou a ler o seu livro Eu investigo qualquer coisa sem registro (2021), publicada pela Crivo Editorial.
Enquanto procurava alguma newsletter para me inspirar a escrever a edição de fevereiro, encontrei um site chamado Thaís escreve e fui ver de quem era a autoria: a mesma, Thaís Campolina. Para aumentar o número de vezes em que seu nome apareceu durante meus dias sem eu nem procurar, em janeiro recebi uma chamada pelo Coletivo, uma conversa pela Casa Inventada do exemplar da Thaís, e foi um momento tão rico de trocas que achei que poderia ser um sinal para partilhar aqui.
Somando a lista de poetas mineiros presentes nos volumes da Frestas, Thaís Campolina nos convida para uma poesia com múltiplas significações. Poemas irônicos, poemas denúncias, poemas-colagens, poemas que transformam. Com o intuito de estranhamento, mascaramento e, claro, investigação, a escrita da poeta apresenta muitos eus e muitos nós, quase que uma poesia, julgo dizer, que apesar de principiar uma identidade, atrai pelo próprio processo natural de sua deformação.
Estruturado em quatro partes, cenário; testemunhas; autoria; tempo e ação, o livro reestrutura, como visto nos escritos das poetas brasileiras contemporâneas, a ideia “sacralizada” e “padronizada” de que a poesia, durante muito tempo, foi pensada. As divisões na construção do exemplar passam, ao longo de todos os registros, pela transmutação dos objetos e pela impossibilidade de definir o imóvel e o importante. O livro todo, assim, é uma preparação inegável e inconscientemente de todo o dia: a impossibilidade de saber/ver tudo, porém, o poder, dado a cada indivíduo, de questioná-la.
Tem um verso de um poema de Herberto Helder que diz "lá fora existe o mundo" e, para mim, esses registros se mostram muito aqui. É a semelhança para o questionamento e para abertura a novas abstrações.
Um dos poemas que mais me chamou a atenção e que mais me impactou também como leitora e escritora foi o poema intitulado Serra do Curral, que demonstra todo o diálogo e distanciamento que há presente ao longo do livro. Me intriga essa ideia de firmeza x ruína; liberdade x prisão; do cupim como pessoa que destrói, e ao mesmo tempo, que constrói; da dinâmica do tempo associada ao objeto e ao poema que se deteriora; ao significado da palavra curral, por ser uma área normalmente descoberta, mas, ao mesmo tempo, um local fechado; finalmente, a serra como um poema denúncia para a degradação da vegetação mineira.
Como escreveu Miguel Torga em Bichos (1940), “fazemos parte do mesmo presente temporal, e quer queiras, quer não, do mesmo futuro intemporal. Agora, sofremos as vicissitudes que o momento nos impõe, companheiros na premente realidade quotidiana.” Assim como Thaís Campolina mostra em Eu investigo qualquer coisa sem registro, cabe a nós leitores, perceber, como um processo de implosão, a poesia como uma “ruína habitada”, e questionar se nós somos vítimas ou criminosos desta leitura e dura realidade.
E quem seria mais adequada do que a própria autora para falar sobre sua composição?
Aqui vão algumas palavras:
A poesia como um elemento orgânico e novos poetas brasileiros contemporâneos
“Não há poetas com <<P>> grandes e poetas com <<p>> pequeno. Há poetas. Gente que trabalha ludicamente o material sonoro, de natureza social e histórica, a que chamamos linguagem e que, nesse jogo, nos ilumina a realidade. Por iluminar, quero exactamente referir o processo <<mágico>> e <<científico>>, que resulta da observação e da experiência, e que se traduz em novas metáforas. Depois, nós. E sobretudo <<os outros>>.
(Capinha, 1997, p.65-66).
Em Janeiro eu abri no meu instagram o recebimento de poemas de poetas que gostariam de ver seus escritos na newsletter desse mês e fiquei surpresa na quantidade de envios e em como cada um, inéditos para mim, me fizeram reconhecer outros escritos, o que só reforçou a ideia geral de toda essa nossa conversa.
Como diz Valentina Molina, já pensou quantas memórias carregam as montanhas?
Resolvi deixar aqui, a partir dos poemas, este lembrete: ver a poesia como um elemento orgânico, lembrar daquilo que está aos ouvidos.
O corpo: Sarah Munck Vieira e Maria Teresa Horta
o corpo é mais que um corpo
é um fio de cabelo
escorrendo no chuveiro
quando uma mão se estira
um fio não é apenas um corpo
é a parte pelo todo
salvaguardando as estradas
de olhos à espera
uma mulher e um corpo
estendem a coluna
enquanto interceptam a rua
uma mulher não é um corpo
é escama que tateia o chão
a queratina quebradiça.
(um corpo não é só um corpo, Sarah Munck Vieira)
digo do corpo
o corpo
e do meu corpo
digo do corpo
o sítio e os lugares
de feltro os seios
de lâmina os dentes
de seda as coxas
o dorso em seus vagares.
(o corpo, Maria Teresa Horta)
A curva: Gabi Vasconcellos e Fernando Pessoa
gosto de contemplar tuas sardas
que, como estrelas, salpicam
teu rosto-céu-noturno
quero me perder nos teus olhos
sóis-verdes que hipnotizam
e prendem e fazem voar as
borboletas todas que moram em mim
preciso do toque dos teus lábios
curvas-da-estrada-de-santos
gosto da liberdade que inebria
quando tocam os meus.
(poema sem título, Gabi Vasconcellos)
enquanto vou na estrada antes da curva
só olho para a estrada antes da curva,
porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
de nada me serviria estar olhando para outro lado
e para aquilo que não vejo.
importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
(para além da curva da estrada, Fernando Pessoa).
O verbo: Gisela Maria Bester e Manoel de Barros
ensinar.
limitar.
libertar.
significar.
adornar.
costurar.
rezar.
zelar.
bordar.
orientar.
puxar.
amparar.
empurrar.
(ar, Gisela Maria Bester).
no descomeço era o verbo.
só depois é que veio o delírio do verbo.
o delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
a criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
e pois.
em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
o verbo tem que pegar delírio.(no descomeço era o verbo, Manoel de Barros).
A pele: Fernanda Germano x Maria Isabel Iorio.
fica-me um nó nas vozes.
onde está aquela que comigo
estava, que comigo permanecia,
que comigo protegia? não a vejo.
não sou mais a menina-mulher que costumava.
calejadas, estamos sem pele, sem grade, sem voz.
poder nunca podemos, não agora seremos.
fica-me um nó nas mãos ensanguentadas -
pelo sangue das outras,
pelo sangue das mínimas,
pelo sangue do meu próprio ventre.
(gesta de si, Fernanda Germano).
todas as peles mortas, o leitor sabe
que sou eu.
que não posso…
sabem o nome composto que disseram
enquanto apontavam pra mim
chorando.
decidem o nome assim - ao
ver a gente chorando.
a máquina escreve o meu nome.
aprendi a me defender desse
nome.
(acertos, isso nunca, Maria Isabel Iorio).
O fluxo: Maria Gabriela Cardoso e Hilda Hist
é tão difícil guardar
o coração no peito
e fingir que ali dentro
só sangue passa.
(fluxo, Maria Gabriela Cardoso)
e agora digo que há um pássaro
voando sobre o Tejo. por que não posso
pontilhar de inocência e poesia
ossos, sangue, carne, o agora
e tudo isso em nós que se fará disforme?
(do desejo, Hilda Hist)
Habitação: Regiane Folter e Angélica Freitas
tateie, sinta suas texturas
descubra como realmente é
sua forma e densidade
de que material está feito
não faça perguntas.
(aceite o que sente, Regiane Folter)
a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor
particularmente
sou uma mulher
de tijolos à vista.
(a mulher é uma construção, Angélica Freitas)
Rascunho: Nicolas Vasconcelos e Esteban Tavares
sou rascunho
e me passo a limpo
sem temor
sem temer
buscando equilíbrio
entre quem acham que sou
e quem nasci para ser.
(rascunho, Nicolas Vasconcelos)
pelo jeito a mão tremia
pelo jeito pretendia
passar a limpo outro dia
hoje estou só
hoje estou tão cheio deles.
(tchau Radar, Esteban Tavares)
Alguns outros:
As músicas que me fizeram companhia no embaralho desses dias:
A fotografia maravilhosa da capa está disponível para visualização no instagram do fotógrafo Tumba Quituxe.
Final de semestre reservado para escrita e avaliações finais, porém, essas foram as minhas humildes leituras do mês de Janeiro:
Digressões em meia volta, Sarah Munck Vieira.
O que é a poesia hoje?, Revista Elyra.
Cursos de escrita rolando no mês de fevereiro.
Os filmes apresentados na Mostra de Cinema de Tiradentes em janeiro de 2023!
E para você que leu até aqui, muito obrigada, e te espero para o poema-potência-ato seguinte, no #frestas 05!
Meu nome é Julia Peccini (@julia_peccini), tenho 22 anos, sou mulher, poeta e imigrante. Nascida em Niterói, no Rio de Janeiro, vivo e resisto em Portugal desde 2018. Meu novo livro, Nem só de amor vive Afrodite, está disponível para compra pela Casa Philos, e te convido a dialogar comigo um pouco sobre essas frestas que nos despontam.